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Sobre Contextualização 

Isto é um manifesto? Talvez. É panfletário?, só na medida em que o Capitalismo se decidiu suicidar e a autodestruição que estamos a assistir diz respeito a toda a gente, neste sentido é uma realidade que circula entre toda a população e não um Manifesto de um determinado grupo de pensamento. Vivemos o fim antropofágico do capitalismo, este devora-se financeiramente a si próprio. O Modju, a Peste Emocional[1] de que falava Wilhelm Reich está disseminada por todos os actores socias, agentes institucionais, em toda a sociedade. Vivemos de novo uma guerra de classes sem quartel. Agora que vivemos o regresso do recalcado fascista sob a forma de egoísmos nacionais que afogaram o sonho Europeu no Mediterrâneo, convém lembrar as palavras quase finais d’ Os Memoráveis, de Lídia Jorge, espelham o estado de Alma dos que viveram o dia luminoso e progressivamente foram atirados para as trevas. Hoje estamos despedaçados, perturbados, lutamos contra os nossos próprios fantasmas. Somos uma sombra do que fomos, sempre à espera de um novo Renascimento, porque nunca morreremos. No 25 de Abril:

«Tudo o que aconteceu foi limpo, foi lindo, foi único, eu vi, eu assisti, eu estive lá. Não lhe toques, não lhe toques mais… (…) Conheço-te bem [diz ele para a filha jornalista desta nova vaga] (…) tu não andaste de casa em casa atrás dos meus amigos para que eles recordassem aqueles dias, tu foste regalar-te com a sua decadência. Foste espreitar, congratular-te, alterar o que viste e ouviste através dessa tua lente esquinada, para poderes dizer eu conheço-os, eles não são o que dizem ser.» (D. Quixote, 2014: 326)

 

Portugal é um desencanto, apesar deste esforço de regresso ao progresso e justiça social e da tentativa gorada de modernidade que só serve para vender as nossas cidades aos turistas, por isso somos obrigados a entrar num outro patamar da realidade, voltar às Artes – porque aí é ainda o simbólico que domina enquanto valor em si e não o dinheiro. Combater de novo a boa guerra de criar o inconsumível “objecto” – o processo de criar provocação, pasmo e desordem nos lugares comuns do mundo burguês. Estamos inscritos na História, a nossa voz, as nossas mãos e o nosso corpo são parte de uma luta maior onde nos encontramos na plenitude. Esta é a luta final dos Revolucionários Eróticos contra o neo-liberal-fascismo que não tem uma forma meramente económico-social, mas cultural e sobretudo político-sexual:

«O capitalismo e a democracia tratam cada indivíduo como um consumidor e um eleitor, prometendo-lhe tudo e condenando-o, portanto, à eterna insatisfação pessoal e política, que é a verdadeira alma do negócio. A sociedade democrática é aquela na qual se vai gerindo a política da frustração libidinal e sentimental. O resultado disto está à vista de todos (…) a personalidade das pessoas tornara-se um aspecto supérfluo e até incomodativo. A solidão e o desejo são as únicas características humanas que interessam ao capitalismo.» Paulo Varela Gomes, Hotel, Tinta da China, 2014: 280)

 

Esta sociedade centrada no desejo nunca satisfeito, no swing, nos espectáculos de sexo, dos peep shows aos grande eventos erótico-festivalescos, é dominada, paradoxalmente, por uma moral vitoriana por um lado e por um furor legislativista, por outro, em que se criam categorias normativas e se defendem os seus direitos excluindo inadvertidamente toda uma grande parte da população que não se enquadra em qualquer “categoria” (na verdade estereótipos) – como a psicanálise mostra à evidência – não existem “categorias” fixas e imutáveis no campo da sexualidade. Neste contexto, toda a expressão individual fora das categorias mainstream acaba por ser vista como doença ou desvio. Queremos combater as categorias do Desejo, e alargar esse combate à Obra de Arte que essa sim só pode sobreviver pelo seu carácter único e dissonântico. A Arte é a expressão do Desejo de um Autor único e irrepetível[2] que vive num determinado tempo e contexto.

O que escrevemos não é novo, Herbert Marcuse na sua caracterização da sociedade unidimensional anunciou-nos este novo mundo. As suas 25 teses, um testamento político que nos legou soava como profético. Faço uma reduzida síntese da sua última conferência em Maio de 1979 – “Acerca da Técnica e da Sociedade: O Medo de Prometeu” – Marcuse, freudiano e marxista, morreria alguns meses depois, em pleno Verão:

«O que se deveria modificar seria a (…) base económica-política: a relação entre as pulsões de vida e de destruição na estrutura psicossomática dos indivíduos. Isso significaria: modificação da estrutura psicossomática dominante, que sustenta a concordância com a destruição, a habituação à vida alienada (…) É um protesto vindo de todas as classes da sociedade motivado (…) pela vontade de salvar aquilo que ainda resta de humanidade, alegria e autogestão: Revolta das pulsões de vida contra a pulsão de morte socialmente organizada.

«Trata-se de cada indivíduo e da solidariedade de cada indivíduo; não apenas de classes ou massas! (…) uma contracultura centrada nos indivíduos (…) é positiva sempre que ela salvaguarda, na era da integração total, a utopia concreta de um progredir para além do existente; sempre que insiste, contra a produtividade da razão instrumental, na receptividade criativa da sensualidade; sempre que insiste, contra a omnipotência do princípio do trabalho, no direito ao princípio de prazer.» Raiz e Utopia, 11/12, Verão de 1979, pp.4-9.

 

Acabará por escrever que qualquer expressão pública “que não retém a lembrança de Auschwitz, que é rejeitada por Auschwitz como insignificante, é fuga, subterfúgio”. Hoje, ser antifascista, como o sugere Marcuse, é ser anti-neo-liberal. E a Arte ou é política ou não é nada. Conclui-se, igualmente, que não existe uma dialéctica política exterior à luta de morte entre Eros e Thanatos. É o mesmo nas Artes.

 

[1] «O ódio contra o natural, o doente contra o saudável, é o fulcro da minha actividade psiquiátrica actualmente. A este problema chamo eu de Peste Emocional, e eu vejo-o de um modo biológico. (…) Emocionalmente, o ser humano vive à superfície, com a sua aparência superficial. Certo? Para que se atinja o núcleo onde se encontra o natural, o normal, o saudável, é preciso atravessar essa camada intermédia. E nessa camada intermédia existe terror. Existe terror violento. (…) Isto significa que antes de poder atingir-se o verdadeiro ponto – o amor, a vida, a racionalidade – é preciso passar através do inferno.» (Reich fala de Freud, Moraes Ed., 1979: 103 a 107.)

[2] Esta é a verdadeira identidade de EGO. «De facto, o significante é o que representa o sujeito para um outro significante. O que conta não é a identidade é a identificação. Identificação simbólica, ou seja, identificação com um significante.» A esta identificação Lacan chamou traço unário. «O sujeito adquire no entanto a sua capacidade de se distinguir dos outros, fazendo valer a sua singularidade por um só traço, um qualquer. É o que Freud chama o narcisismo da pequena diferença. (...) O traço unário indica a singularidade, quem sou eu enquanto ser-para-a-morte. (...)» Nós diríamos, à maneira de Bataille, ser-para-a-pequena-morte. «O que nos distingue, não são as dissemelhanças na realidade, as características – desse ponto de vista somos mais semelhantes que diferentes – mas o lugar que cada um ocupa numa rede consciente e inconsciente que o significa.» É este lugar, esta perspectiva (de onde desejo), que me define. Maria de Jesus Belo, Preto e Branco, Dissertação de doutoramento, policopiado, Univ. Nova de Lisboa, 1999, pp.51, 54 e 53.

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